Release – Gotas de Sangue

Natureza melancólica, sabor agridoce

“Em “Gotas de sangue”, o cantor João Fênix e o pianista Luiz Otávio passeiam por um repertório que, com delicadeza, testemunha a solidão e a fragilidade, em canções de compositores como Ivor Lancellotti, Vinicius de Moraes, Angela Ro Ro, Tom Jobim e Roberto Carlos.””

Leonardo Lichote

O piano suave prepara a entrada do vocativo mais delicado já dirigido à pessoa amada na história da música popular brasileira (pelo menos essa é a certeza que temos no instante em que o ouvimos): “Quindins do meu querer”. O verso seguinte arremata: “Cadinho de cambucá” (fruta mateira, brasileira, cada vez mais rara, de gosto agridoce). Está definido ali, nos primeiros segundos, o tom que marca “Gotas de sangue”, disco do cantor João Fênix ao lado do pianista Luiz Otávio. Se espalham por suas dez faixas suavidade, delicadeza, querência, intimidade, doçura, brasilidade, raridade — e um leve travo de acidez-cambucá.
“Gotas de sangue” foi colhido fruta madura fora de época. Fênix não planejava um disco de voz e piano — ou melhor, ele planejava desde o início de sua carreira um álbum no formato, mas não para agora. Quando a pandemia teve início, o cantor trabalhava num projeto de duetos (que retomará tão logo seja possível). Como se mostraram inviáveis as condições para os encontros presenciais necessários aos duetos, Fênix decidiu, em vez de lamentar, dialogar com as circunstâncias. Começou então a trabalhar no que seria “Gotas de sangue”.

— Eu tinha esse repertório orgânico, uma lista de canções que carregava comigo,
que falam muito fundo à minha natureza melancólica — conta Fênix, referindo-se a canções de artistas como Vinicius de Moraes, Roberto Carlos, Angela Ro Ro, Chico Buarque e Tom Jobim. — Falei pro Jaime (Alem, que assina a produção do disco): “Vamos pro seu estúdio, eu você e o Luiz Otávio”. A cada sessão, fazíamos teste de Covid e, em cinco dias, gravamos tudo.
“Quixeramobim”, canção que abre o disco com quindins e cambucá, era uma das poucas que não estava nessa lista inicial. Composta por Ivor Lancellotti e Roque Ferreira, ela é uma canção de despedida serena, do personagem que, com o fim da seca, decide partir pra Quixeramobim (“Lá começou a chover”). A melodia, a voz e o piano sustentam na ponta dos dedos os versos: “É lindo/ A luz dos olhos seus/ Mas não conheço beleza/ Maior do que a natureza/ Em flor nos sertões de Deus”.

— Essa foi uma das que gravei no primeiro take, o que foi acontecendo com várias.
Eu perguntava ao Jaime se não era melhor gravar de novo, ele dizia que não, que estava ótimo. Comecei a me assustar com isso e a errar letras de propósito pra poder fazer pelo menos mais um take — lembra, rindo, o cantor.
Ivor Lancellotti, paixão mais recente de Fênix (“Todo domingo ouço”, diz o cantor), entrou no disco com mais uma, “Algemas”. Além das duas de Ivor, apenas mais uma canção do disco não acompanhava Fênix há anos: “Todo homem”, de Zeca Veloso. Ela é interpretada por Fênix, na primeira parte, num registro mais grave (originalmente, Zeca a canta em falsete), revelando belezas novas — tanto na canção como no canto de Fênix, cuja voz de contratenor, de características masculinas e femininas, é um de seus traços marcantes.
A canção do filho de Caetano Veloso é fundamental dentro do arco dramático do disco, do caminho que “Gotas de sangue” traça da primeira à última faixa. Ela vem logo depois de “Quixeramobim” e instaura a sombra amorosa e grandiosa da força feminina que paira sobre o disco: “Todo homem precisa de uma mãe”.

— Mesmo sendo um cara andrógino, gosto de ser homem — afirma Fênix. — Mas sei que a gente não é inteiro sem a força feminina, que pra mim é a que rege o universo.
Essa força da dádiva, do nascimento, da proteção.
Em contraponto à força feminina, e ressaltando-a, as faixas que sucedem “Todo homem” são um testemunho da fragilidade masculina. Como o desespero do personagem de “Lígia” (de Tom Jobim) frente à mulher que batiza a canção, negando sua verdade mais funda numa tentativa de exorcizá-la: “Eu nunca quis tê-la ao meu lado/ Num fim de semana/ Um chopp gelado/ Em Copacabana”. A tranquilidade com que Fênix e Luiz Otávio atravessam esse desespero o torna ainda mais evidente.
“Tristeza e solidão” (de Baden Powell e Vinicius de Moraes) descreve um homem tão mergulhado no abandono que recorre aos orixás para ter a amada: “Sou da linha de umbanda/ Vou no babalaô/ Para pedir pra ela voltar pra mim/ Porque assim eu sei que
vou morrer de dor”. O piano reforça a atmosfera de gravidade em seus silêncios e cadência. Da mesma forma, o canto de Fênix encontra contundência na contenção, sem nunca transbordar o drama, levando cada canção a seu limite.

“Algemas” (de Ivor Lancellotti) também confessa sua fraqueza não só perante a mulher, mas perante o mundo. “Quem te congelou o coração/ E deixou esse inverno em mim?”, pergunta a letra. “Ternura antiga” (de Dolores Duran e Ribamar) lista palavras como “amargura”, “agonia”, “desencanto”, “vazio” e expressões como “rua escura” e “vontade de chorar”. Seu romantismo clássico ecoa a gravação de Roberto Carlos, em 1974 (ano em que Fênix nasceu):
— Acho que minha mãe ouviu muito esse disco na gravidez, porque ele bate muito forte em mim — brinca Fênix, que também teve como referência para “Ternura antiga”
a gravação de Nana Caymmi.
“Desalento” (de Chico Buarque e Vinicius de Moraes) suplica “por amor, por favor, (…) pra ela voltar”, e continua: “Estou sozinho/ E sem saber de mim”. Todo homem precisa de uma mãe, enfim. “Sem você” (outra de Vinicius, desta vez com Tom) repisa: “Sem você,
sem amor/ É tudo sofrimento”; “Nada existe/ E o mundo é triste/ Sem você”.

Em todo esse sentimento de abandono, desamparo e desalento que atravessa o disco, Fênix vê reflexos da solidão do mundo moderno — ainda mais visível num momento de isolamento social como este imposto pela pandemia.
Nesse contexto, “O portão” (de Roberto e Erasmo Carlos, tirada daquele mesmo disco do Rei de 1974) afirma o chão, a casa, a segurança — segurança refletida no canto de Fênix
e na liberdade solar do piano. “Gota de sangue”, canção que inspira o título, por fim, encontra o ouvinte num lugar diferente de onde estava no início do disco. A composição de Angela Ro Ro — como o canto de Fênix — entra noutra frequência. Imperativa em vez de suplicante (“Não tire da minha mão esse copo/ Não pense em mim quando eu calo de dor”, “Tira do corpo essa roupa e maldade”). Sábia em vez de desesperada (“Não é muito nem pouco eu diria”). A compreensão plena do agridoce do cambucá.